terça-feira, 27 de março de 2012

O cajueiro cresce...

               O cajueiro de Humberto de Campos foi por ele lembrado no seu livro de Memórias, capítulo XXXII, Amigo de Infância. O cajueiro cresce mais rápido do que ele, o sustenta nos seus galhos e dá asas a sua imaginação.
               "O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera. Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo, experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem que embalasse nos braços o seu irmão de leite. Até que, um dia, seguro da sua rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio, e, todas as tardes, lhe subo ao galho mais empinado onde, com o braço esquerdo cingindo o caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da Chegança, que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:
         Assobe, assobe, gajeiro,
         Naquele tope real...
         Para ver se tu avistas,
         Otolina,
         Areias de Portugal!
         Mão direita aberta sobre os olhos como quem devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão São Caetano:
         Alvíssaras, meu capitão,
         Meu capitão-general!
         Que avistei terras de Espanha,
         Otolina,
         Areias de Portugal!
         A memória fresca e límpida reproduz, uma a uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba, uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos portugueses, alvoroça as ruas arenosas da Parnaíba. O vento forte, vindo das bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido nas ondas. E eu, sugestionado pela imaginação, via eu via! as vagas rolando diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam, as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.
         Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o estribilho ipsilon marcando sonoramente as seis horas. Os do sr. Antônio de Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau ancorada na terra, desço, tristemente, do folhudo mastro do meu cajueiro, sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um lampião de querosene, a lição do dia seguinte.

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