terça-feira, 29 de novembro de 2011

Um passeio pelo campus... Rubem Alves.

          A Clivia, Laelia e o Bruno, meus três primeiros filhos, me acompanharam nos primeiros anos de minha vida de trabalho. Sempre gostei que eles participassem, quando crianças, do meu dia a dia. Por isto mesmo estão sempre me lembrando dos bons tempos que viveram junto do meu trabalho no Departamento de Parques e Jardins e na Universidade de Brasília.
       Recebi da Laelia, já tem algum tempo, um texto muito bonito escrito por Rubem Alves, educador, escritor, psicanalista e professor emérito da Unicamp, e que repasso na íntegra para os amigos do Ser Livre.
                   “Gosto de passear pelo campus da Unicamp, domingos pela manhã, quando o tempo está bonito. Abril, maio, o outono começou, há uma grande tranqüilidade em tudo, o céu azul eterno, as cigarras e o seu zunir enchendo o ar, chamando parceiros para o amor, depois de longos anos que passaram ocultas no fundo da terra escura, o vento está discretamente frio, bom para empinar papagaios, os anus atrevidos soltam seus pios, e ao longe se podem ver os lagos, garças brancas nas margens. Nenhum ruído metálico perturba a calma da natureza, e de quando em quando se vêem crianças correndo.
            Acho que a vida deveria ser assim, um grande jardim, os corpos fazendo amor com os elementos fundamentais da natureza, o sol, a terra, a água, o ar. Porque para isso fomos criados... Não é por acaso que os mitos mais primitivos sonhos da humanidade, dizem que o Criador fez o universo inteiro só para poder, ao final, plantar um jardim. Não, ele não ficou vagando pelos espaços siderais, o céu das estrelas. Preferiu o jardim e andava por lá, gozando as delícias da brisa da tarde. O jardim é a felicidade de Deus, que deve se parecer um pouco com a gente, pois se não parecesse não teria encontrado o fim de sua criação na erotização dos olhos, dos ouvidos, da boca, do nariz, da pele: as cores das plantas, o barulho dos bichos, do vento, das águas, o gosto das frutas, o cheiro das ervas e da terra molhada pela chuva, o arrepio da pele tocada pelo vento frio.
            Quem não entende a linguagem do corpo pensa que a universidade está parada. Que ela acontece só nas salas de aula, nos laboratórios, nas reuniões dos notáveis. Não percebe que é justamente naquela calma tranqüila que ela revela o "para quê" da sua existência: a universidade existe só para ajudar os homens a transformarem os desertos em jardins. Nisto se parece com os mosteiros - universidades primeiras - que construíam seus prédios em torno de um espaço central onde havia uma fonte e as plantas podiam crescer: memórias do paraíso perdido, promessa de se reencontrar o caminho perdido, gozo provisório da felicidade, em meio ao deserto, utopia de um futuro com o qual a humanidade inteira sonha...
            Houve tempo em que universidade era só o lugar para se (de)formar profissionais. Ali entravam os moços, cheios de sonhos, e saiam de saber competente - engenheiros, dentistas, médicos... E quando os filhos recebiam seus diplomas, os pais se preparavam para morrer, missão cumprida, os filhos sobreviveriam, conseguiriam um emprego. O que estava em jogo era a sobrevivência individual de cada um.
            Mas agora sobrevivência individual é coisa muito pequena: a própria sobrevivência do país está em jogo - e até mesmo a sobrevivência da humanidade. É tolice ser um profissional competente se o barco em que se navega está afundando. A competência tem de ser maior, muito maior...
            Curioso que, em nossos programas, não existia nenhum lugar para simplesmente passear pelo campus. Pois não deveria? No jardim está a única justificativa para o sofrimento por que se tem de passar e a disciplina a que se tem de submeter no processo do saber. É preciso não esquecer o sonho, pois, se ele for esquecido, o sofrimento de aprender se torna sem sentido.
            Todo jardim começa com um sonho de amor. Antes que qualquer árvore seja plantada ou qualquer lago seja construído é preciso que as árvores e os lagos tenham nascido dentro da alma. Quem não tem jardins por dentro não planta jardins por fora. E nem passeia por eles...
            Andar pelo campus é recuperar a memória, tomar consciência da única coisa que importa. O mais - ensino, pesquisa, invenções, descobertas - só tem sentido como ferramentas para o plantio e o cultivo do jardim. Mas muita gente aprende tudo sobre pás, enxadas, picaretas e esterco sem nunca chegar a sonhar com o jardim, que é a única finalidade de tudo isto. Brecht dizia que a única finalidade da Ciência é aliviar o sofrimento da existência. Acho que podemos ser um pouco mais otimistas: é criar também a possibilidade de prazer. A própria prática da Ciência pode ser também uma experiência de alegria. Uma das árvores do Paraíso era a árvore do conhecimento - cheia de fascínios...
            Roland Barthes nos lembra que uma das mais importantes atividades que acontecem na universidade tem o nome de seminário. Seminário vem de sêmen, e o sêmen só sai dos seus esconderijos internos numa explosão de amor e prazer...
            Andando pelo jardim é como se estivéssemos andando por um lugar utópico: ali reencontramos os nossos sonhos mais profundos e repetimos: "É assim que queríamos que o mundo todo fosse." Do jardim, lugar do amor, voltamos para a sala de aula e o laboratório, lugares do poder. Saber é poder. Sem o poder do saber o jardim não pode ser plantado.
            Mas as caminhadas, domingos pela manhã, deixam-me triste. Os jardins estão quase vazios. E por todos os lugares, os sinais de desamor dos que andam por ali: as garrafas sobre as águas do lago, os copos de plástico pela grama, os maços vazios de cigarro, latas enferrujadas de refrigerantes. Isso não aconteceria se aquele fosse um espaço amado. Aquilo que fazemos ao jardim revela aquilo que faremos ao espaço maior que habitamos, a cidade, o país. Naquela violência que se faz ao jardim (e no dia seguinte ao dia da Universidade Aberta o espetáculo é indescritível!) - lamento dizer - revela-se um pedaço da nossa alma que já se esqueceu de sonhar e nem sabe cuidar da beleza ao seu redor.
            Talvez que, ao lado de todas as práticas para se criar o necessário saber competente, seria necessário que nossas escolas se dedicassem à educação erótica do corpo e da alma. Sem amor ao pequeno espaço utópico do jardim não será possível esperar que o conhecimento venha, jamais, a ser usado para a construção do grande jardim. Como dizia D. Miguel de Unamuno, "saber por saber é desumano". Ou Ferenezi, um dos pais da psicanálise: "Tal conhecimento é um produto da morte, manifestação de insensibilidade e, portanto, manifestação de loucura." Não, o problema fundamental de nossa educação não está na falta de recursos. O problema está em que não sabemos mais sonhar. Recursos abundantes nas mãos daqueles que se esqueceram de sonhar só podem produzir a morte. Muito saber sem amor é estar possuído por demônios.
            É preciso voltar ao jardim para fazer ressuscitar a educação. O campus está lá, a cada manhã, como um fragmento de utopia. E se é verdade, como sugeriria o matemático Polya, que a solução de todos os problemas tem de começar do fim, eu sugeriria que fosse a partir do jardim que nos puséssemos a pensar no tipo de educação que temos de ter, para produzir coisa tão bela. Espalhar, no ar, num orgasmo de amor, as nossas sementes...”


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